O assalto à democracia


Por esses dias terminei uma leitura deveras esclarecedora, o livro “Failed States” (no Brasil, “Estado Fracassados”, editora Bertrand Brasil) de Noam Chomsky. O americano Chomsky é um dos papas da linguística moderna e poderia ser considerado talvez um “Einstein vivo” desse campo por conta de sua revolucionária teoria da sintaxe gerativa que, apesar de já ser considerada ultrapassada, em seu tempo influenciou profundamente essa ciência e formou seguidores. Nos últimos anos Chomsky se notabilizou como um crítico dos Estados Unidos, principalmente em relação à política externa do país. Ele começou a se levantar durante a guerra do Vietnã e se tornou uma das mais ferozes vozes que ousam contestar a verdade ditada por esse país, suas forças armadas e suas igualmente devastadoras corporações e grupos de mídia.

O objetivo do livro – e de boa parte de sua obra atual – é expor a falácia do discurso norte-americano de promoção da democracia quando, na verdade, é o país que mais a ataca. Enquanto tentam fazer crer que cumprem uma missão quase messiânica de propagação da democracia, Chomsky busca exemplos em várias regiões do mundo para mostrar que a promoção da democracia e dos direitos humanos só acontece quando convêm aos interesses americanos, os do país e de suas corporações.

Os argumentos desta tese não são poucos. Os EUA proveram suporte e apoio incondicional a ditaduras brutais em todo mundo se apoiando na justificativa do “perigo vermelho” no passado e ainda o faz. Agora, porém, há um novo inimigo para legitimar suas ações: o terror. Enquanto condena duramente – com razão – o regime ditatorial iraniano, ignora completamente a Arábia Saudita, outro país onde as expressões “direitos humanos” ou “liberdade de imprensa” não possuem significado. Inclua-se na lista de aliados algumas ex-repúblicas soviéticas como a Geórgia, Armênia e Uzbequistão, onde os EUA aumentam cada vez mais sua influência política e militar por conta das ricas reservas de gás e petróleo lá existentes. Alguma semelhança com a Arábia Saudita e o recém “libertado” Iraque?

Na América Latina e Caribe as marcas do patrocínio de sucessivos governos ditatoriais também se fazem sentir. A ignominiosa “Escola das Américas” foi o maior centro formador dos torturadores que se espalharam por essas terras e contribuíram para genocídios selvagens ocorridos em praticamente todos os países da região, da Terra do Fogo ao Rio Grande.

As consequências de tais políticas para os EUA e sua imagem e a arbitrariedade de suas ações podem ser considerados os pontos centrais da crítica de Chomsky. A principal conseqüência é o aumento do ódio e do sentimento antiamericano. A realidade é que o terrorismo recrudesceu com a “guerra ao terror” deflagrada após o 11 de setembro de 2001. O Iraque, onde não foram encontrados as armas de destruição em massa e os campos de treinamento de terroristas, se tornou um dos maiores pontos de convergência de voluntários de todo o mundo dispostos ao martírio em nome da jihad. O segundo ponto diz respeito ao fato dos EUA sistematicamente desrespeitarem leis e tratados internacionais como a Convenção de Genebra e acordos da OMC. Exemplos desse desrespeito são a filosofia da “guerra preventiva” (pre-emptive war), filha da Doutrina Bush, e o sequestro e detenção em Guantânamo de suspeitos de terrorismo.

Abro um parêntese para ilustrar como os EUA forjam seus próprios inimigos. O primeiro exemplo é o Irã, onde os EUA patrocinaram a derrubada do governo de Mossadegh (1951 a 1953) . Governo esse que foi democraticamente eleito e reivindicava para o país – e não para corporações estrangeiras – os lucros do petróleo. No seu lugar instalou um governo subserviente e despótico cujos atos e crescente insatisfação da população levaram à revolução islâmica e à criação do atual regime dos aiatolás.

Na Guatemala, a experiência da social-democracia liderada por Jacobo Arbénz (1951 a 1954) começava a render frutos quando um golpe militar (treinados por quem?) o derrubou. Uma das testemunhas do golpe foi um jovem que à época era pouco politizado e que se encontrava no país. Revoltado com o golpe, ele se juntou às poucas forças que resistiram mas, com a queda do governo, foi expulso do país e levou consigo a certeza sobre a influência maléfica dos EUA na América Latina. Esse rapaz se chamava Ernesto Guevara e se tornaria o um dos líderes da revolução que criou outro país do “eixo do mal”.

O livro já vale a leitura por traçar, de forma bastante sintética e atualizada, o quadro geopolítico mundial, ajudando a entender forças e atores da ordem vigente. Além disso, o autor expõe as questões sob pontos de vista diferentes e consegue trazer fatos e conexões que nem sempre são evidentes ou mostrados na mídia. O seu maior valor, porém, reside na sua crítica que, além de bem fundamentada, vem de um cidadão norte-americano e judeu que não poupa o próprio país ou a política israelense. Se o autor fosse Chávez ou Ahmadinejad, talvez não merecesse crédito.


Agradeço ao meu pai Rosalvo pela lição sobre Chomsky e a importância da teoria da sintaxe gerativa e à Andreza pelas sugestões no texto.

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