Uma noite inesquecível








Creio que é um tanto difícil para uma pessoa, em um determinado momento, ter a exata dimensão do contexto histórico no qual está inserida. Certas passagens só têm a sua grandeza compreendida quando olhadas com o devido distanciamento de que a história precisa.

Os cineastas Renato Terra e Ricardo Calil buscaram com seu filme “Uma noite em 67” justamente compreender a importância do que aconteceu na noite da final do III Festival de Música Popular Brasileira, promovido pela TV Record em 1967 e o que aquela noite significaria para a MPB e para o rock brasileiro.

Alguns aspectos chamam a atenção para aquele evento. Primeiro, a tensão do momento, pois o Brasil já se encontrava há três anos sob uma ditadura e essa tensão se manifestaria no comportamento da platéia. O público, aparentemente mais engajado política e ideologicamente, tomava partido a favor ou contra os intérpretes de forma radical e alternava aplausos vigorosos e vaias homéricas. É nítida a apreensão dos intérpretes antes de suas performances e, quando sentiam que haviam ganhado o público, logo se via o alívio nos rostos, como aconteceu com Edu Lobo e Marília Medalha em “Ponteio”, a grande vencedora da noite. Roberto Carlos não se abalou com as vaias e ficou com o 5º lugar com “Maria, Carnaval e Cinzas”. Sérgio Ricardo anunciou ironicamente que estava rebatizando sua música de “Beto Bom de Bola” para “Beto Bom de Vaia”, tal era o clima. Logo depois, porém, ele sucumbiu: interrompeu a sua apresentação, quebrou o seu violão e o atirou na platéia, que o vaiava sem dó nem piedade.

O segundo destaque é a quantidade de talentos reunidos: Chico Buarque, Gilberto Gil, Caetano, Edu Lobo, Elis Regina, Jair Rodrigues, Roberto Carlos e incontáveis músicos de calibre nos grupos de apoio como Os Mutantes, o MPB-4 e o Quarteto Novo integrado por Heraldo do Monte, Hermeto Pascoal, Theo de Barros e Airto Moreira. Mesmo com um nível tão alto, surpreende saber que uma canção antológica como “Roda Viva” de Chico Buarque ficou em terceiro lugar, mas, de fato, as duas primeiras realmente mereceram os dois primeiros lugares: a campeã “Ponteio” e “Domingo no Parque”, do Gil. Era um momento raro de pura genialidade em efervescência, comparável a festivais como o de Woodstock ou o de Isle of Wight, que conseguiram reunir em um só local vários ícones de um determinado estilo.

O terceiro aspecto, talvez o mais importante, teria sido a transformação que estava acontecendo com a MPB naquele momento. Ela começava a incorporar elementos vindos de fora, em especial o rock. A “invasão estrangeira” sofreu oposição por parte dos músicos, culminando com uma inusitada passeata contra a guitarra elétrica, símbolo do “invasor”. Curiosamente, Gilberto Gil participou da passeata, mas se rendeu ao novo e contou como banda de apoio Os Mutantes, psicodelicamente paramentados e eletricamente equipados. Acabou faturando o segundo lugar. Igualmente eletrificado estava Caetano Veloso – esse, sim, havia se recusado a participar da passeata – com sua “Alegria, Alegria” que ficou em quarto lugar. Nesse momento se lançava a tropicália e a música brasileira se abria para o mundo. Como definiu depois Gil, “era a fusão de Beatles com Luiz Gonzaga e de Jefferson Airplane com a Banda de Pífanos de Caruaru”.

De acordo com os próprios artistas, essa fusão dividiu e rotulou – talvez injustamente – vários músicos e seus trabalhos como “novo” ou “antiquado”. O fato é que um capítulo importante da música brasileira estava começando. A influência estrangeira se manifestaria em outros momentos, como nos trabalhos da turma do Clube da Esquina, ou de grupos como o Secos & Molhados de Ney Matogrosso e João Ricardo. Era um caminho sem volta, talvez a prova de que a música é realmente universal. Afinal, o que é bom e inovador desconhece fronteiras, tempo e fórmulas e sabe navegar entre vários estilos.


Para saber mais:

Filme: “Uma Noite em 67” de Renato Terra e Ricardo Calil

Livro: “A Era dos Festivais – Uma Parábola” de Zuza Homem de Mello

Algumas cenas também estão disponíveis no Youtube. Procure por “Festival de Música Popular Brasileira” e é possível ver várias performances.

(Texto publicado no Jornal das Lajes, Maio de 2011)

Comentários

  1. Momento marcante. Outra referência interessante é o livro "Seguindo a canção: engajamento político e indústria cultural na trajetória da música popular brasileira (1959-1969)" do historiador Marcos Napolitano, com um capítulo específico sobre os festivais.

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