Quando a psicodelia desembarcou no Brasil



O oceano chamado música brasileira sempre abrigou uma diversidade incrível de artistas e grupos, sempre mais ou menos classificados por rótulos de acordo com seus estilos e influências: bossa nova, rock, samba, caipira, sertanejo, axé e por aí vai. Poucos, porém, conseguiram transitar com desenvoltura por mais estilos e, de fato, criar pontes entre as “espécies” diferentes. Entre os que conseguiram essa façanha e sobre o qual gostaria de falar um pouco são Os Mutantes.

A história do grupo começa em 1965 mas foi em 1966 que se firmou a formação que daria notoriedade ao grupo: os irmãos Sérgio Dias (guitarra) e Arnaldo Baptista (baixo) e a vocalista Rita Lee. No histórico festival da Record de 1967 (veja aqui o que escrevi sobre esse festival), tornaram-se conhecidos do grande público como a banda de apoio de Gilberto Gil na histórica “Domingo no Parque”. Aquele festival de 1967 talvez tenha sido um divisor de águas da MPB e o marco fundador da Tropicália, que teria o seu disco-manifesto “Tropicália ou Panis et Circensis” lançado no ano seguinte.

Na ponta desse movimento de renovação da MPB estavam Os Mutantes, que traziam o elemento rock para dentro da MPB. O rock já falava português, porém, ainda numa fase ingênua marcada pela Jovem Guarda e o Iê-Iê-Iê influenciado pela fase inicial dos Beatles. Em 1968, porém, a música dos Beatles e o rock já se encontravam em outro estágio de experimentação e os tempos da psicodelia e das viagens de ácido já havia começado. O próprio lançamento do álbum Sergeant Pepper’s influenciaria decisivamente o trabalho dos tropicalistas. Com o álbum “Tropicália” quase pronto, Caetano, Gil e companhia decidiram segurar o lançamento e reformulá-lo inspirados pelo novo padrão de álbum conceitual introduzido pelos Beatles, como conta Zuza Homem de Mello em seu “A Era dos Festivais” (aliás, leitura recomendadíssima).

Os Mutantes então embarcaram nessa onda de experimentação de efeitos e foram um dos grandes percursores no Brasil do uso de guitarras distorcidas e efeitos diversos. Vale lembrar que aqueles eram tempos em que os pedais de efeitos de guitarra ainda começavam a se popularizar mesmo no exterior e o acesso aqui no Brasil era muito restrito, assim como o era aos amplificadores de grandes marcas. Os Mutantes contornaram a dificuldade graças ao gênio de Cláudio César Dias Baptista, irmão de Sérgio e Arnaldo. Um grande aficcionado por eletrônica, Cláudio construía desde amplificadores à toda sorte de efeitos, com destaque para a legendária guitarra Regulus, usada por Sérgio Dias, que possui efeitos embutidos na própria guitarra, além de ser folheada a ouro para minimizar interferências.

Outro grande apoio que a banda - e o movimento tropicalista como um todo - teve em sua experimentação veio do maestro Rogério Duprat, que sempre trabalhou grandes arranjos para orquestra, ajudando Os Mutantes a mostrar uma música original mas antenada com o que acontecia mundo afora com os Beatles e Beach Boys. Será que poderíamos chamar Rogério Duprat de o George Martin brasileiro?

A formação histórica teve uma duração curta e durou somente até 1972 quando terminou de forma tensa e amarga após somente cinco discos lançados. Na verdade seis, pois o primeiro álbum solo da Rita Lee (“Hoje É o Primeiro Dia Do Resto Da Sua Vida”) foi gravado com os Mutantes, mas a gravadora optou por lançar somente com o nome dela pois os Mutantes já haviam lançado um álbum naquele ano. Em seguida, Rita Lee abandonou o grupo e, pouco depois, Arnaldo Baptista também. Sérgio Dias ainda levou o grupo até 1978.

Em 2006 Sérgio, Arnaldo e Dinho Leme (baterista desde 1969) se reuniram para um grande concerto na Inglaterra, registrado em CD e DVD (“Mutantes ao Vivo – Barbican Theatre”) e que contou com Zélia Duncan fazendo a voz feminina. O projeto rendeu vários shows no Brasil e exterior mas já em 2007 Arnaldo abandonou o grupo e continua até hoje trocando farpas com o irmão, que segue com o grupo e lançou em 2009 “Haih or Amortecedor”, o primeiro disco de estúdio dos Mutantes desde 1974. De acordo com Sérgio, um novo disco está para sair a qualquer momento.

Já se mostrou que longevidade nunca foi requisito para que bandas escrevessem seus nomes na história, haja visto grupos como The Cream ou Secos & Molhados (sobre quem pretendo falar em breve) e com Os Mutantes não foi diferente. Apesar dos poucos anos de duração da sua formação mais famosa, marcaram seu nome como um dos grupos mais criativos do rock brasileiro. Se não for o mais criativo. Eles conseguiram renovar o rock nacional ao mesmo tempo em que aproximaram esse estilo da MPB e deixaram como legado um caminho aberto para um rock mais consistente e maduro.

Por fim, compartilho um vídeo muito bacana que foi gravado ao vivo na França e redescoberto há pouco tempo. Nele Os Mutantes interpretam uma versão em inglês de “Caminhante Noturno”. Notem Rogério Duprat na condução da orquestra e devidamente paramentado de acordo com a moda hippie e psicodélica.



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