Quando os deuses andavam entre nós
Na Grécia antiga os deuses e semideuses conviviam com
mortais. Disfarçavam-se ou se transformavam para seduzir jovens incautos. Na
Ilíada de Homero, até escolheram lados e combateram na Guerra de Tróia junto
aos heróis Heitor, Ulisses e os exércitos troianos e gregos. Porém, não vou
falar dos deuses gregos, mas sim dos deuses de nossa música popular brasileira,
a MPB – sigla que abriga artistas com estilos tão diferentes entre si tal qual
os príncipes e irmãos Páris e Heitor. Três livros que passaram por minhas
leituras recentes contam várias histórias de quando os nossos deuses da MPB
andavam entre nós e eram vistos nos bares, clubes obscuros e ruas que nós
conhecemos: Tom Jobim, Vinícius, Chico Buarque, Milton Nascimento, Elis Regina,
João Gilberto, Lô Borges e um panteão completo de outros grandes nomes.
O primeiro é “Os Sonhos Não Envelhecem”, de Márcio Borges,
que conta a história do Clube da Esquina.
Márcio, um dos irmãos da talentosa família Borges foi, junto com o mais
velho Marilton, um dos primeiros a conhecer Milton Nascimento em Belo
Horizonte. E foi o seu primeiro parceiro em composições, além de um dos
letristas principais do Clube da Esquina, ao lado de Fernando Brant e Ronaldo
Bastos (Márcio assina letras como “Tudo que você podia ser”, “Clube da Esquina
nº 2”, entre outras). É uma narrativa em primeira pessoa, fiada na memória de
um dos fundadores de um clube que ganhou notoriedade internacional. Além disso,
é reconhecido hoje como um dos movimentos que não só sacudiu a música
brasileira na ressaca pós-bossa nova, mas que trouxe para MPB influências do
rock inglês (leia-se Beatles).
Além de uma leitura prazerosa, o livro se destaca por contar
histórias interessantes do Clube, desde a ida de Milton para BH, o começo do
seu sucesso nacional com “Travessia” e a entrada em cena dos parceiros mais jovens
Lô Borges e Beto Guedes, que eram crianças quando Milton começou a compor com
Márcio. A história da gravação do álbum antológico “Clube da Esquina”, que
levou o movimento para além das montanhas de Minas, é um trecho de destaque da
bela história da reunião de talentos e de um trabalho construído a várias mãos.
A sintonia do grupo é a tônica da história e é bem exemplificada no trecho onde
se conta a história da famosa “Para Lennon e McCartney”. Em um barulhento
almoço na casa dos Borges, Lô mostrou a melodia que havia composto. Dali Márcio
e Fernando Brant saíram para quartos separados e, após meia hora, cada um
voltou com um trecho da letra, cabendo a Márcio o “porque você não verá...” e
Fernando assinando a parte “eu sou da Ámerica do Sul...”. Genial, não? Pois foi
isso o Clube da Esquina, uma seleção de talentos que ainda por cima sabiam
jogar como um time.
A segunda leitura, também um belo relato em primeira mão, é
o “Noites Tropicais” de Nelson Motta. Nelson foi testemunha do nascimento da
Bossa Nova, além de parceiro em composições de Dori Caymmi, Marcos Valle, Lulu
Santos e outros. Após uma carreira como músico que durou muito pouco, ele se
tornou um produtor musical respeitado e teve toda sua vida ligada à música e
grandes artistas. Nos anos 90 ainda foi responsável pela descoberta e
lançamento de Marisa Monte. Credenciais mais do que suficientes para garantir
histórias interessantes em um livro que conta passagens relevantes da música
brasileira desde a bossa nova até o estouro do rock nacional nos anos 80. Em
suas páginas transitam gigantes que, por sua proximidade a Nelson, ganham uma
vida que salta das páginas para nossa imaginação, como Elis Regina, Tim Maia e
Roberto Carlos. Musicalmente falando, é abrangente pela diversidade de estilos
que passam pelas páginas, desde o samba e bossa nova até o rock, passando pelo
funk/soul e a moda da discoteca dos anos 70 (Nelson estava, por exemplo, por
trás da formação de As Frenéticas). De fato, uma bela coleção de histórias
interessantes, como a criação do famoso Circo Voador, berço da explosão do rock
nacional.
A última leitura foi “Chega de Saudade”, de Ruy Castro,
sobre a história da Bossa Nova e de como esse movimento saiu da zona sul do Rio
de Janeiro e ganhou o mundo, virando quase sinônimo de música brasileira no
exterior. Focado na “Santíssima Trindade” da Bossa Nova – Tom Jobim, Vinícius
de Moraes e João Gilberto – o livro conta em detalhes a transformação vivida
pelo excêntrico João Gilberto, que desembocou na criação da famosa batida, e
como esse ritmo encontrou um porto seguro nas composições de Tom e letras do
Poetinha. O livro é fruto de uma pesquisa primorosa e traz histórias dos
bastidores que valem a leitura. Conta, por exemplo, como os artistas
brasileiros foram enganados por editores estrangeiros inescrupulosos que os
lesaram nos direitos autorais. Ou como vários artistas conquistaram os Estados
Unidos e quando Tom Jobim recebeu uma ligação em um bar no Rio de ninguém menos
do que Frank Sinatra, convidando-o para a histórica gravação dos dois gênios.
São três excelentes leituras que deveriam vir acompanhadas
de áudio para se ouvir os artistas e músicas citadas. Mesmo sem o áudio, as
músicas vêm à cabeça enquanto se lê. Os três livros despertaram em mim uma
grande vontade de ir atrás de álbuns históricos e ir mais fundo na discografia
de vários artistas. Infelizmente, nem tudo está à disposição em catálogos, mas
vamos procurando, pois é uma busca sempre bem recompensada. Por fim, as
leituras nos fazem refletir sobre a polêmica do momento, o movimento encabeçado
por certos artistas para se proibir a publicação de biografias não autorizadas.
Dá pra se pensar em quantas grandes histórias poderão não ser contadas por
conta de uma censura prévia idiota.
(publicado no Jornal das Lajes, novembro/2013)
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