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Histórias e lições

Uma das belezas das artes é que a obra sobrevive ao artista e perpetua sua existência no imaginário do seu público. Ainda assim é impossível não se lamentar quando um grande artista se encanta precocemente, deixando a sensação de que havia muito por se tocar. Em abril desse ano, um dos maiores violeiros do país, o Índio Cachoeira, pegou sua viola e levou-a para tocar em outros planos. Como diria o Rolando Boldrin, partiu antes do combinado.

Violeiro e luthier autodidata, aprendeu a tocar viola como os grandes violeiros: nas rodas de viola e festas populares, como as folias de reis. Interessado não só no ponteado da viola, mas também na construção do instrumento em si, certa vez arrumou um violão para, em seguida, mergulhá-lo na água para que suas peças descolassem e pudesse ele entender como era sua estrutura e montagem. Dedicou-se, então, também ao ofício de luthier, construtor de instrumentos, sempre tocando em violas construídas por ele mesmo. Fez parte por alguns anos da tradicional dupla Cacique e Pajé, na qual registrou alguns discos. Vivendo em um país onde não se dá o devido valor a músicos de estilos fora dos circuitos comerciais, Cachoeira precisou se virar por algum tempo como motorista de ônibus até resolver viver exclusivamente da sua arte.

Violeiro virtuoso e compositor inspirado, registrou seus trabalhos solos já quase aos 60 anos de idade. Seus discos instrumentais “Solos de Viola Caipira”, “Violeiro Bugre” e “Viola Caipira Duas Gerações” (esse em parceria com Ricardo Vignini) são obras de arte e um tributo às possibilidades e sonoridades da viola. Nesses álbuns, Cachoeira mostra não só o domínio do instrumento, mas um estilo de composição único que remete não apenas às sonoridades da música caipira, como também traz temperos mais universais, com referências a outras sonoridades modernas e de fronteiras amplas. Além de instrumentista, era um grande cantor e registrou também trabalhos em dupla com Cuitelinho e, mais recentemente, com Santarém no ótimo “Ponteando Tradições”, sobre o qual escrevi aqui no começo do ano.

Tive a felicidade de conhecer e conviver com o Índio Cachoeira em três oportunidades, em um curso intensivo de viola organizado pelos violeiros Ricardo Vignini e Zé Helder, da dupla Moda de Rock. Cachoeira era sempre uma atração à parte por ser um legítimo violeiro representante da essência da viola caipira e do sertão, buscado pelos violeiros mais experientes pela oportunidade de aprender com um grande mestre. No convívio próximo, é claro que o violeiro me impressionava com seu toque preciso e seu conhecimento enciclopédico da música caipira. Mas o que me marcou foi sua humildade e amor verdadeiro pela viola. Não esqueço quando ele pediu para um violeiro iniciante tocar um pagode de viola, ritmo intrincado e cheio de manhas. O violeiro tocou como pôde, mas se desculpou ao final por não ter tocado muito certo. Foi quando o Cachoeira falou: “Você tocou certo, sim. Do seu jeito.” Para então se virar para a turma e afirmar categórico: “Quando algum violeiro falar com vocês que tem que tocar assim ou de outro jeito, não dá bola. Cada violeiro tem o seu jeito de tocar. Não existe jeito errado de tocar viola.” É uma lição que sintetiza toda a história da viola caipira, que se espalhou por todo o país e se desenvolveu de forma independente em cada região, com toques e afinações que mudam a cada curva de rio.

Daqueles dias fica também o agradecimento pela paciência do mestre que me ensinou, literalmente, nota por nota, a tocar uma de suas peças instrumentais, “Viola Marruda”. A cada nota errada ou ritmo mal feito, vinha uma palavra de incentivo, como um verdadeiro professor que sempre desafia o aluno, mas o apoia na hora das passagens mais difíceis. Fico feliz por ter tido essa sorte de aprender com um músico desse calibre. E também por tê-lo homenageado ainda em vida em duas oportunidades nessa coluna. Que o mestre siga iluminando todos os violeiros de onde ele estiver.

(Publicado no Jornal das Lajes, julho de 2018)

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