O Pasquim: resistência com inteligência




Por esses dias encontrei em uma banca de promoção um volume da antologia do Pasquim, cobrindo os anos de 1972 e 1973. Já havia namorado esse volume, não comprado e me arrependido. Não repeti o erro. Nos primeiros minutos de passeio pelas páginas vi que a decisão foi acertada e me deliciei com o livro.

O Pasquim foi muito mais do que uma publicação. Foi um ato de resistência ao governo militar, lutando com armas suaves e ferozes ao mesmo tempo: inteligência, cultura e humor mais do que afiado. Da reunião de uma seleção de craques que incluía Millôr Fernandes, Henfil, Jaguar, Ziraldo, Paulo Francis, Sérgio Cabral e outros, só poderia sair coisa boa.

É impossível não passar pelas páginas sem se deter nos cartuns e quadrinhos incríveis dessas feras. Em um país que continua desigual, controlado por grupos com interesses pouco republicanos e esfolado diariamente na luta do pão de cada dia, os quadrinhos permanecem mais do que atuais, infelizmente. Um bom cartunista é gênero de primeira necessidade em nosso país e, felizmente, o bastão foi passado para boas mãos e nesse quesito continuamos bem servidos, apesar de que sempre acho que o Henfil faz falta nos dias de hoje. Em tempos em que o presidente da república fala com tanto desdém dos nordestinos, por exemplo, gostaria de ver a opinião da Graúna, do Zeferino e do Bode Francisco Orellana.

O Pasquim, porém, é muito mais do que seus cartuns e charges. Os textos são ótimos e as entrevistas sensacionais. Nesses dois campos é que acho difícil – quiçá impossível – achar alguma publicação à altura nos dias de hoje. Sobre os textos não posso emitir opinião, pois não dediquei ainda o tempo necessário. Exceção feita a um breve, mas muito legal texto do Cabral explicando porque Pixinguinha foi o maior músico do Brasil. Ao que parece, foi escrito logo após a morte do músico. Curiosamente, acabei fisgado pelas entrevistas, que se destacam pelo conteúdo, perguntas brilhantes e, principalmente, pela total ausência das pragas da obviedade e do bom-mocismo que infestam as entrevistas atualmente. Nos dias hoje, o que vemos com frequência são entrevistas pautadas pelo entrevistado e devidamente esterilizadas pelos seus assessores de imprensa. Ou entrevistas sem o mínimo de contundência por parte do entrevistador para se manter em bons termos e com acesso ao entrevistado.

Naquelas que eu li no Pasquim, entretanto, achei algumas revelações muito legais e, em certa medida, surpreendentes. Como quando o Carlos Alberto Torres, capitão de 70, fala com todas as letras que o Brasil não seria campeão daquela copa se o João Saldanha tivesse se mantido como técnico. Ou quando o Dadá Maravilha explica que por trás daquela figura expansiva e divertida há um sujeito que tem uma história de vida difícil e que sofre profundamente com várias tristezas que a vida lhe deu. Guilherme Araújo, que na época era empresário de Gil e Caetano, é pressionado pelos entrevistadores para discutir aparentes contradições da dupla, como no caso de Gil que iria tomar parte de um grande festival (o Festival Internacional da Canção, FIC, da Globo) após ter sido desclassificado na seletiva do mesmo evento em 68. O dia seguinte àquela eliminação de Gil ficou marcado pela vaia histórica que Caetano levou e sua reação com um discurso furioso enquanto defendia “É proibido proibir”. Hermeto Pascoal também surpreendeu com seu proposital distanciamento da política naqueles dias e um aceno de certa simpatia à censura que ainda operava forte.

Pensando no momento atual e por toda a grande mudança de hábitos de leitura e relações com as novas mídias e redes sociais, pode-se questionar se uma publicação no estilo do Pasquim prosperaria, seja em papel ou mesmo em um novo formato eletrônico. De todo modo, a reunião de tanta gente boa me faz crer que, inevitavelmente, ao menos teriam um grande impacto e fariam barulho. Poderia também discutir se tal empreitada sobreviveria financeiramente, mas creio que isso é quase um detalhe, já que fracassaram da primeira vez e ainda assim fizeram história. De todo modo, em dias em que estamos testemunhando uma escalada do autoritarismo, é mais que natural pensar: que falta faz o Pasquim.

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