Eis o rock rural

O começo dos anos 70 rendeu para a MPB uma geração incrível de novos artistas e injetou em nossa música um frescor de sonoridades. Apesar das cosmopolitas São Paulo e Rio de Janeiro concentrarem a produção musical, a fronteira de influências se expandiu com a chegada de novos artistas, como Lô Borges, Beto Guedes e a turma do Clube da Esquina, de Minas Gerais, ou Alceu Valença, Fagner e Belchior do Nordeste. A expansão se deu não só em termos regionais, mas também em estilos e fusões de ritmos. Uma dessas fusões veio no trabalho do trio Sá, Rodrix e Guarabyra, que lançou em 1972 o disco “Passado, Presente & Futuro”. O som do grupo foi rotulado de “rock rural”, possivelmente por conta do verso da canção de Zé Rodrix e Tavito, “Casa no Campo”, imortalizada por Elis Regina, no qual os autores cantam que queriam uma casa para, além de receber amigos e os discos, compor “rock rurais”.

O nome acabou se tornando um rótulo para um estilo que é até difícil de definir. Que há influência do rock, não há dúvida. Porém, com uma forte pitada de ritmos nacionais, numa mistura original. Original, porém, que encontra paralelos curiosos mundo afora, como no trabalho de grupos do chamado “Folk Inglês”, como o Fairport Convention. Ou, viajando um pouco mais na comparação, com o notório grupo de San Francisco, o Grateful Dead. E essa fusão saborosa de estilos voltou aos holofotes em 2017 e 2018 com a série de shows “Nós do Rock Rural – Encontro de Gerações”, que reuniu no mesmo palco os já citados Guarabyra e Tavito com dois artistas de uma geração mais recente, Tuia e Ricardo Vignini. Depois juntou-se ao grupo o experiente Zé Geraldo, autor do clássico “Senhorita”. O encontro transformou-se em um excelente disco ao vivo com o nome do show, lançado há cerca de um ano, e que chegou à minha mão recentemente.

O show foi idealizado e tem a direção artística assinada por Tuia Lencioni, cantautor do Vale do Paraíba. O nome “Encontro de Gerações” fica claro pelo time reunido. De um lado, alguns dos precursores do estilo, como Guarabyra, Tavito e Zé Geraldo. De outro, o próprio Tuia e o violeiro Ricardo Vignini. Vignini é um violeiro experiente e já mostrou que a viola pode se fundir com vários ritmos em seus trabalhos com o Moda de Rock (em que toca clássicos do rock em um duo de violas) e o Matuto Moderno (uma banda de rock com duas violas no lugar das tradicionais guitarras). Em outras palavras, se o rock rural é uma fusão de estilos, a viola de Vignini é escolha certa. De fato, ele se encaixou muito bem graças aos seus competentes solos e contrapontos. Em uma formação de instrumental bem econômico – além da viola de Vignini, só há os violões dos demais – a viola foi essencial para preencher espaços e teve a proeminência devida, mas sempre respeitando o formato de canção e seus intérpretes.

E sobre canções, o disco é um desfile de clássicos de Guarabyra, Tavito e Zé Geraldo, como “Dona”, “Casa no Campo” e “Senhorita”. Tuia, por sua vez, tem um desafio e tanto como cantautor ao dividir o palco com artistas consagrados. Em um show, é natural que a plateia espere pelo clássico para cantar junto músicas que fazem parte da memória afetiva. Por exemplo, no show em que fui, “Rua Ramalhete” foi pedida pela plateia do começo ao fim. Ainda assim, Tuia segurou as pontas e a plateia, mostrando que é ótimo cantor, dono de uma voz precisa e potente e também compositor com méritos. Ricardo Vignini ainda teve um espaço merecido para mostrar dois temas instrumentais: a virtuosa “Capuxeta” e “Alvorada”. A presença de quatro cantores tarimbados deu um brilho especial ao repertório, com ótimos arranjos vocais em canções naturalmente fortes.

Com tudo isso, o “Encontro de Gerações” foi muito feliz. Os clássicos ganharam novo fôlego em interpretações primorosas. Já a nova geração prova que a música brasileira continua forte e inspirada. Além disso, o show tem um valor importante por ter sido o último registro em disco de Tavito, que, infelizmente, se encantou poucas semanas após o trabalho ficar pronto. Enfim, o álbum é uma audição mais do que recomendada.

(Publicado no Jornal das Lajes, abril/2020)

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