Discos da pandemia


Os artistas estiveram entre os mais afetados por essa terrível pandemia cuja força vai diminuindo, mas que ainda inspira cuidados. Com os palcos fechados por um longo período, toda a classe artística e profissionais de suporte – iluminadores, técnicos de som e outros - perderam, da noite para o dia, sua fonte de renda. Também ficaram expostos os problemas inerentes ao streaming, cuja remuneração dada ao artista beira o ridículo.

Ainda assim, muitos músicos deram uma contribuição inestimável e nos ajudaram a suportar esses dias. “Música e vinho alegram o coração”, já dizia o Eclesiastes. E na pandemia pudemos ter algum conforto não só em apresentações via internet, mas também em discos. Apesar das dificuldades, não foram poucos os bons trabalhos e pretendo comentar alguns. Vamos, então, aos dois primeiros discos.

“A desordem dos templários”, Guilherme Arantes – Guilherme Arantes foi uma verdadeira usina de produção de grandes sucessos nos anos 80, ao lado de artistas como Lulu Santos e Renato Russo. Quem é da minha geração se lembra da presença constante do artista em programas de TV como o “Cassino do Chacrinha” com hits como “Cheia de Charme”, “Deixa chover” e a canção que o revelou, “Planeta água”. O que poucas pessoas sabem é que, por trás do artista capaz de compor sucessos populares, há um músico virtuoso e influenciado pelo intrincado rock progressivo.

Fã declarado de tecladistas como Rick Wakeman, ele começou sua carreira com o Moto Perpétuo, grupo de rock progressivo bastante ortodoxo. Com este novo álbum, Guilherme Arantes volta às origens com uma pegada bastante progressiva e de arranjos elaborados, mas sem perder de vista o seu talento para fazer canções com melodias que saímos cantando depois da primeira audição. Gravado praticamente sozinho com suporte de teclados e tecnologias digitais, o álbum consegue soar quente e é preciso dar a Guilherme todos os créditos pelos arranjos e composições de alta qualidade. O trabalho, que reúne influências diversas de estilos brasileiros e do rock, é uma ótima audição para fugir de fórmulas tradicionais.

“Aldir Blanc inédito”, vários artistas – Aldir Blanc é uma unanimidade ao se compilar qualquer lista dos maiores letristas da música brasileira. O poeta e escritor deixou sua marca em letras que se tornaram praticamente hinos como “O bêbado e o equilibrista” ou “O mestre-sala dos mares”, ambas compostas em uma das parcerias mais prolíficas da música mundial, com João Bosco. A perda recente do compositor, infelizmente, é ilustrativa das mazelas que afligem a vida de artistas. Nos modelos atuais de remuneração de compositores – com pagamentos pífios em plataformas de streaming – a sobrevivência digna destes artistas vai se tornando cada vez mais difícil, como se mostrou nos últimos dias de vida de Aldir.

Passando por dificuldades financeiras, o artista dependeu de ajuda de amigos e fãs para se tratar de complicações de saúde sofridas durante a pandemia. Acabou por contrair COVID e se tornou uma de suas vítimas mais conhecidas. Após sua partida, sua viúva Mary Lúcia de Sá Freire reuniu escritos inéditos e composições que ainda não haviam ganhado registro em discos para uma homenagem ao poeta. Seus parceiros de longa data e artistas de peso prontamente toparam o projeto, capitaneado pelo selo Biscoito Fino. Parceiros como João Bosco, Guinga, Joyce e Cristovão Bastos não poderiam faltar no disco, que teve a produção assinada por Jorge Helder e ainda contou com grandes intérpretes como Maria Betânia, Chico Buarque e Dori Caymmi, entre outros. Com tanto talento reunido, o resultado não poderia ser menos que excelente.

Ambos discos são audições mais que recomendadas. Além disso, são um instantâneo importante desses dias terríveis de pandemia. O de Guilherme Arantes, produzido sozinho em casa, é o retrato do isolamento ao qual muitos de nós fomos submetidos. Já o de Aldir ilustra, de forma triste, as dificuldades inerentes à vida de artistas. E também dá um rosto conhecido para representar as milhares de vítimas de uma pandemia que escancarou a cara nefasta da desigualdade social e a incompetência e má fé de um governo que ignorou a vida de muitos.


(Publicado no Jornal das Lajes, novembro de 2021)

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