Os Beatles vistos por dentro


O Papai Noel chegou mais cedo em 2021 para os fãs dos Beatles. Em novembro passado, foi lançado o documentário “Get Back” (Disney+), que mostra, de uma posição privilegiada, a criação do álbum “Let it be”. Esse foi o penúltimo disco gravado pelos Beatles, quando o grupo já se segurava por um fio. E o registro é histórico. A criação e a gravação das músicas foram acompanhadas, durante várias semanas, por equipes de filmagem e é possível ver de perto e com poucos filtros todo o processo criativo e a interação entre os membros do grupo mais influente da música pop.

Parte das filmagens não é inédita. O projeto nasceu da ideia de se produzir um especial para TV e um show no qual os Beatles apresentariam músicas inéditas. O plano era uma volta ao rock básico: músicas gravadas praticamente ao vivo e que pudessem ser executadas em shows. Há tempos os Beatles vinham sofisticando suas gravações, com a inserção de orquestras, camadas diferentes de vozes e toda sorte de efeitos, sem a preocupação da execução ao vivo. Assim, seria uma volta às raízes, dos tempos de shows simples. Reuniram-se, então, em um estúdio de TV onde começaram o trabalho de composição, sempre filmados por diversas câmeras. Depois de algumas semanas, desistiram do estúdio de TV e optaram por voltar para o estúdio próprio, que ainda estava sendo finalizado no prédio da Apple, no centro de Londres.

Cerca de 60 horas de filmagem e 150 horas de áudio foram condensadas em um documentário de uma hora e vinte minutos de duração, lançado em 1970 com o título “Let it be”, mesmo nome do álbum. O documentário, assinado pelo diretor Michael Lindsay-Hogg, é bastante sombrio e mostra a tensão alta no relacionamento entre os quatro Beatles. Todo o material foi revisitado pelo aclamado diretor Peter Jackson (“O senhor dos anéis”) e transformado em três capítulos, que somam quase 8 horas de vídeo, e rebatizado de “Get Back”. Nesse formato foi possível incluir elementos novos e que ajudam a mudar um pouco a imagem que os fãs faziam daquele momento. Se o original mostrava um clima péssimo de trabalho, Peter Jackson ajudou a trazer uma nova luz aos eventos. Antes do lançamento, com base nos primeiros vídeos promocionais, havia indícios de que o novo filme poderia querer “adoçar” os eventos, numa possível tentativa de reescrita da história da banda.

Felizmente não foi o que aconteceu. As tensões e discussões estão lá e dois momentos cruciais são adicionados ao filme original. Primeiro, o auge da tensão, quando George Harrison se levanta e anuncia que iria deixar a banda e vai embora. Somente após vários dias de discussões entre os outros três e duas reuniões com Harrison é que este recua e retorna ao trabalho. Outro momento precioso para os fãs e pesquisadores é a conversa gravada entre John Lennon e Paul McCartney justamente sobre a saída de George. A conversa franca, gravada com um microfone oculto e sem conhecimento dos dois, é reveladora. Ainda assim, “Get Back” mostra que havia um clima razoável, com várias brincadeiras entre eles, e que ainda existia uma química incrível e respeito mútuo entre John e Paul quando o assunto era compor e gravar. É impressionante ver como músicas que hoje são icônicas nasciam dentro do estúdio. É uma janela aberta mostrando o talento para a criação dos quatro rapazes de Liverpool.

É um documentário que recomendo para todos? Não. Para os fãs, nem é preciso. Provavelmente já assistiram... e mais de uma vez. Para quem tem só alguma curiosidade pelos Beatles, também não indico. É muito longo e, em alguns momentos, pode parecer retratar só o caos nos ensaios ou discussões inúteis. Mas, para quem tem um interesse um pouco maior sobre música, com certeza eu indico. É a chance de ver do lado de dentro um dos maiores grupos de todos os tempos. Não creio que outras grandes bandas, como Pink Floyd ou Led Zeppelin, tenham material tão rico sobre o trabalho de criação e que mostre de forma tão honesta a dinâmica do grupo. De quebra, a cena do famoso show no teto do prédio da Apple é maravilhosa e emocionante. Mostra que, mesmo que os Beatles estivessem muito próximos do rompimento, ainda existia uma chama forte acesa e que sempre nos fará pensar: “Por que não durou mais?”


(Publicado no Jornal das Lajes, fevereiro/2022)

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