Precisamos de discos

A caixa da Joyce Moreno produzida pelo selo Discobertas:
resgate necessário da história da nossa música

Bem, ao menos eu preciso. Gosto de ouvir música e ter informações sobre o que está tocando e não abro mão de ter um encarte e poder admirar a capa. Alguém pode até argumentar que isso seria coisa de fanático e que um ouvinte casual só quer escutar música e pronto. E talvez seja verdade, visto que muita gente sempre ficou satisfeita de ouvir sua música favorita no rádio e depois migrou para os tocadores de mp3 e, recentemente, para o Spotify e outros serviços de streaming. Mas a minha preocupação é que se o formato do streaming não for revisto, pode contribuir para apagar parte de nossa memória cultural.

Por esses dias, eu comprei uma caixa de CDs da grande compositora e cantora Joyce Moreno, com quatro álbuns lançados por ela nos anos 80, remasterizados. Feliz com a aquisição, já estava preparando para tirar uma foto e compartilhar nas redes sociais, quando comecei a analisar o conteúdo com cuidado e as reflexões que se seguiram me levaram a escrever este texto. Nos CDs foi incluída uma reprodução dos encartes originais, além das letras e créditos aos músicos envolvidos. Não é uma edição de luxo, mas é um trabalho muito bem executado, promovido pelo selo “Discobertas”, do pesquisador Marcelo Froes, sobre o qual já escrevi nessa coluna (confira o texto AQUI).

E aí alguém pode me questionar: “Mas se não preciso do encarte, é só abrir no Spotify”. Pode tentar, caro leitor, mas já adianto que o sucesso será parcial. E é quando se percebe que essas plataformas precisam melhorar e muito. O problema começa na organização do acervo da Joyce. Parte dos seus discos está sob nome artístico “Joyce”, como ela começou a carreira, e outra como “Joyce Moreno”, que ela adotou após se casar com o baterista Tutty Moreno. Além disso, a caixa possui quatro CDs: “Feminina” (1980), “Água e Luz” (1981), “Tardes Cariocas” (1983) e “Saudades do Futuro” (1985). O terceiro simplesmente não está disponível no streaming. Finalmente, os dois primeiros aparecem com uma capa errada. Mais do que uma tremenda falta de respeito com a artista e seu trabalho, é uma parte da nossa rica música que vai sendo apagada e o acesso negado às futuras gerações.

Não me tomem como um saudosista que resiste às tecnologias. Gosto muito do streaming pela praticidade e pelo universo de possibilidades que ele me abre. Porém, a forma como essas plataformas operam precisa ser revista urgentemente. O primeiro grande problema é a remuneração pífia aos artistas, em especial os pequenos e independentes, que, ao fim de um ano, recolhem no máximo uns poucos reais e, mesmo assim, se conseguirem muitas execuções de suas músicas. Isso dificulta qualquer artista viver da sua arte e continuar produzindo material de qualidade. Com a pandemia, durante a qual os shows foram proibidos, o problema da remuneração ficou escancarado. Artistas são necessários e seu trabalho movimenta toda uma indústria. Ou o streaming se ajusta para pagar valores mais justos, ou estamos alimentando um modelo insustentável, em que só os artistas de grande repercussão poderão se sustentar. E não vamos depois reclamar que caiu o nível da música.

Além disso, a falta de informação sobre os álbuns e a desorganização dos catálogos só atrapalham e uma parte da história dos artistas e seus álbuns vão sumindo. Eu sempre preciso recorrer à internet e à Wikipedia para pesquisas sobre determinado artista ou grupo, até para saber coisas básicas, como qual álbum foi lançado primeiro, pois nem isso costuma aparecer corretamente no streaming.

Finalmente, quando faltam discos no catálogo, a possibilidade de ouvi-los vai se complicando, já que, por razões que desconheço, o CD está sumindo no Brasil. Enquanto esse formato segue firme em outros países, com várias lojas vendendo CDs novos, aqui até as grandes gravadoras estão deixando de lançar novidades. Considerando que o preço do vinil, mesmo o nacional, é alto, quando ficamos restritos aos CDs importados, o preço começa a ficar proibitivo.

Por isso tudo, eu acho que precisamos de discos. Curto e ouço muita coisa em streaming, mas, sem mudanças nas plataformas estamos perdendo oportunidades e apagando a nossa história recente. O que virá depois? É difícil prever. Mas algo precisa acontecer.


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